O desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro é, há bastante tempo, um espetáculo comercial. Já não cabe aqui o ranço característico dos que o afirmam com preconceito ou teor crítico. Sabidamente o desfile é uma das grandes ações de marketing cultural de nossa cidade, e deixou para trás a dificuldade de se associar uma manifestação tão genuinamente popular a esse aspecto mercadológico adquirido. Os tempos são outros, não se discute mais isso. A consequente profissionalização dos desfiles e a estruturação das escolas como empresas foi inevitável. Muitas agremiações mantiveram sua tradição e não perderam a rédea. Ou, pelo menos, retomaram a rédea perdida. Ou vêm retomando. Enfim, a comercialização do espetáculo já não parece mais tão vil quanto antes.
A considerar esse aspecto, ouso afirmar que dois pontos são fundamentais para que se possa medir o desempenho de uma escola na avenida. Um deles é o lançamento do cd com os sambas da disputa. Ali se tem a prévia de como o enredo será contado e cantado. O segundo aspecto diz respeito ao barracão e àquilo que só se verá efetivamente nas duas noites de gala dos desfiles. Esperei atentamente o lançamento do cd, portanto, para discorrer algumas linhas e traçar minhas observações.
Destaco que não me ative tão somente à análise dos sambas. Fui pretensioso ao ponto de avaliar a relação entre o enredo e o samba, fomentando hipóteses sobre o que me pareceu ser o cartão de apresentação de cada escola para o que pretende desenvolver na avenida. Acreditem: tive isenção, superei implicâncias e preferências. Entretanto, não fugi - admito - da minha subjetividade. São impressões pessoais, amparadas em algum conhecimento de causa, tendo por intuito oferecer substância para novas reflexões. Sigamos, então.
Gostaria de começar a comentar o carnaval 2010 sob o prisma dos “pães dormidos requentados”. Como se sabe, um pãozinho velho bem quentinho passa por novo. Engana a muitos, mas não engana um bom padeiro. Vamos admitir: Mangueira, Imperatriz e Grande Rio tentaram, tentaram, mas não disfarçaram. Estão servindo vinho velho em odres novos! A verde-rosa reconta o enredo da Portela 96 (“Essa gente bronzeada mostra o seu valor”), a Imperatriz copia descaradamente o “Império do Divino” e a Grande Rio tenta ser a Caprichosos 2005 “relembrando” enredos passados. Muito, mas muito deja vu. Sorte da Imperatriz, que conseguiu um samba que é dos mais bonitos do ano. Provavelmente o mais bonito, com o da Vila Isabel. Mangueira tentou emplacar três puxadores e despersonalizou totalmente a gravação. Como o samba é muito fraco, com um refrão indigno das tradições da Velha Manga, nem o “Pavarotti” Rixxa conseguiu evitar que a gravação fosse a mais infeliz do ano. Depois dele, a Grande Rio parece patética ao abandonar a força de seus enredos históricos, que a alavancou ao estrelato, e render-se ao merchandising boçal que já a fez vender Leite Ninho, Leite Moça e agora a coloca como vendedora de latinha de cerveja na avenida. Feio, feio, feio! Melhor abrir logo um Supermercado Grande Rio em Caxias. Suprimiu o enredo, que também é uma colcha de retalhos de vários enredos já mostrados na avenida. Pior: traz um samba que sintetiza o enredo numa citação nada inspirada de desfiles passados. O exuberante Wantuir – há anos o melhor intérprete dos desfiles – merecia cantar coisa melhor que “Vibra arquibancada, explode o camarote nº1 “. Falta de respeito, coitado!
O “museu de grandes novidades” do Cazuza tem as cores da Mangueira e da Grande Rio. Repito: a Imperatriz escapou devido à sutileza de seu samba, obra rara de se ver.
Sobre a questão dos sambas “raros”, convém destacar que também não querem dizer muita coisa. Basta lembrar o Império rebaixado com seu samba antológico sobre as sereias. Afogou-se, coitado. E a impressão de samba tradicional da Imperatriz e da Vila – esta com versos e melodia de riqueza exemplar – esbarra na necessidade de uma cadência de desfile que, sinceramente, esses sambas não me parecem apresentar. Ou seja: duas obras-primas que podem derrubar suas escolas. Ou esfriar o Sambódromo. São obras assim... eu diria... anacrônicas. Fora de sua época. Acho que não funcionam bem no desfile contemporâneo. Sisudas, muito introspectivas. A escola ameaça desfilar só para ela. Os fóruns de internet já mostram esses sambas menos cotados na preferência popular. Não adianta: quem canta o samba é o povão. Se não levanta o povo, não levanta o caneco. Temo por esse anacronismo das obras. Mas lembro que Alex de Souza é a melhor promessa de carnavalesco de verdade e Max Lopes é um antigo pé-quente de Ramos.
Na contramão dos sambas literalmente tradicionais, surge outra vertente. Misto de “samba de condomínio” e “samba com aparência de antigo”, eu o batizaria de “samba-mamute”. Traduzindo: tem cara de ancestral, ostenta ser tradicional, é pesado, sisudo, se arrasta e não empolga. Parece dar voz a 40 compositores juntos. Letras enormes, descrição prolixa do enredo. A rainha desse negócio chama-se Beija-Flor. Não que o samba seja ruim. Não é. Mas também não sustenta a banca de “samba como antigamente” que a Vila e a Imperatriz podem se gabar de ostentar. Não é mesmo. O samba da escola de Nilópolis cansa mais do que empolga, e nos dá a nítida impressão de que jamais aprenderemos a cantar suas intermináveis estrofes e versos. O samba da Beija-Flor não flui nem contagia. Falta leveza.
Leveza sobra na União da Ilha e na Porto da Pedra. Lindos sambas de empolgação, alegres e com a cara das duas escolas. É bom lembrar, aliás, que a Ilha apequenou-se quando tentou engrandecer seu estilo simples e inigualável de fazer carnaval. Volta agora com as mesmas garra e simpatia que a fizeram a “segunda escola” de quem não a tem por primeira. A Porto da Pedra segue essa linha e representa melhor o povo de Niterói do que sua conterrânea Viradouro, que também soa pesada e difícil de contagiar. É outro “samba-mamute” do ano.
Na mesmo embalo das escolas de “samba pesado” travestido de “samba tradicional”, tem as escolas de “samba desconjuntado” travestido de “samba-empolgação”. Infelizmente é o caso da Mocidade, uma de nossas queridas. Lamentavelmente seu refrão dá o tom do equívoco: coloca o “coração para fora da boca”, numa figura de linguagem grotesca e pouco afeita aos padrões poéticos da escola. É caso de se chamar a ambulância! O resto do samba é do tamanho de um dedinho mindinho. Tarefa ingrata digerir o “Meu coração vai disparar, sair pela boca" que a escola de Padre Miguel emplacou no refrão. É simplesmente tosco. Mau gosto perde.
A Unidos da Tijuca consegue reeditar seus anos de ouro da era Paulo Barros. Não tem um samba quente, mas percebe-se que ele é funcional e tem a cara da escola. Identidade recuperada! Descreve bem um enredo que, na verdade, não se descreve. É segredo! Todos nós apostamos na escola do Borel e na ressurreição de Paulo Barros, que perdeu a mão desde que saiu de lá. É o tipo de samba que não se destaca mas sustenta uma escola com o porte da Unidos.
Se um desavisado chegasse hoje ao Rio e ouvisse o cd para tomá-lo por base em prognosticar o carnaval, certamente diria que apenas duas escolas estão disputando pra valer o título de 2010. Seriam essas escolas a Portela e o Salgueiro. Juro, digo com isenção. Longe dos sambas rebuscados e classudos da Vila e da Imperatriz, a Majestade do Samba e a Academia fizeram as gravações mais vibrantes e intensas do ano. Os refrões acentuam a garra que as escolas prometem para seus desfiles. Os enredos ficam muito bem entendidos, não exatamente por aquelas colagens de frases que citam tudo da sinopse, mas porque as letras vão além: traduzem o “espírito” do que se quer contar. O irretocável Renato Lage dispensa comentários para se falar de enredo do Salgueiro. E a Portela, com sua aposta em dois nomes sem expressão e ainda novatos, levanta o astral com seu samba e deixa no ar uma sensação de que irá surpreender os corações mais desconfiados. O samba da Águia cresceu absurdamente na gravação, e isso se deve não só ao gogó privilegiado de Gilsinho, mas também a um extraordinário arranjo de bateria com a cara do mestre Nilo. Já o Salgueiro conseguiu traduzir em notas musicais a euforia de uma escola campeã que luta pelo bi. Não tem dúvida: no placar do cd, a aposta em Salgueiro e Portela é imediata! Reparem: não são exatamente os sambas mais bonitos. Mas são os melhores.
Entenderam?
Se leram tudo que escrevi até aqui, acho que entenderam.
Ah... pra finalizar. No festival de baboseiras apelativas que as escolas usaram ao fim de suas gravações (coisas bestas como gritinhos de “Ah, eu sou Portela”, as palminhas de arquibancada na gravação do Salgueiro ou desvarios como “Mangueira, a melhor escola de samba do Brasil!”), a mais emocionante de todas foi a União da Ilha. Lindo o coro emocionado de seus legionários cantando “A União voltou”. No quesito “legislar em causa própria, só a União fez a força.
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