Se é assim, assim sempre será. A purificação da alma e a nobreza do caráter estão diretamente relacionadas à dor, à insatisfação, à entrega, à renúncia, ao sofrimento. O bom caráter, o bom moço, o bom herói nunca será vitorioso, feliz, vencedor. Ele sempre trará agruras e arranhões, dores e sofrimentos. Sua vitória sempre será simbólica, relativa, nunca absoluta. Ele é “absoluto” por ser relativo. Ou seja: está acima dos demais porque sabe suportar a dor e o sofrimento acima dos outros.
O herói por excelência é o Surfista Prateado. A nobreza de sua alma incorruptível, a renúncia de sua maior paixão e de sua própria liberdade por amor ao próximo, pela salvação de seu planeta, o semblante angustiado e sofrido de um sujeito rejeitado por aqueles a quem escolheu proteger é a maior evidência de sua alma heróica.
E como é que a gente se sente quando é incompreendido? Como a gente se sente quando nossos esforços são vãos, nossas escolhas são frustradas? Como a gente se sente quando faz planos e só consegue ver pessoas dilapidando ou depreciando os panos que fizemos? Como nos sentimos frente às cobranças, exigências e imposições ao nosso redor?
Olhando nos olhos desse herói angustiado, que vaga solitário em sua prancha reluzente – e a prancha, por ser sua condutora, é uma metáfora dos sonhos e dos ideais que nos fazem “voar”, romper os ares em busca de nossa eterna felicidade inalcançável – nos lembra o velho objeto de desejo freudiano, tão bem revelado por Buñuel em Esse Obscuro Objeto do Desejo: a felicidade está sempre tão próxima que (a exemplo da barreira invisível que separa o Surfista Prateado de sua amada Shalla-Bal) parece possível, mas logo alguma coisa nos mostra que ela é inalcançável. O dia que a atingirmos, então ela será contingência, será balela, deixará de ser felicidade.
Só é felicidade porque não pode ser alcançada. Só é felicidade porque está longe, está distante. Tão longe, ta perto. Tão certa, tão impossível. Diante de nós, mas inacessível. Só sabemos que podemos ser felizes porque as dores e os infortúnios constantes nos lembram isso: que a matéria-prima do homem (ainda) é o sonho, e que sonhamos o tempo todo com aquilo que jamais podemos ter. Desse sofrimento e dessa angustia nasce a nossa força, mas dificilmente alcançaremos aquilo que almejamos da maneira como imaginamos que possa ser.
Quando Norin Rad se dispôs a virar Surfista Prateado para evitar a consumação de seu mundo, selou seu destino: tornou-se extremamente poderoso a partir de seu sacrifício e eternamente angustiado por conta de sua privação. “Grandes poderes, grandes responsabilidades” – lembrava Tio Ben ao Homem-Aranha.
Sem caminhos pra seguir na incerteza de chegar
(Quimeras – Letra de Guilherme Isnard)
É por isso que o traço inconfundível de John Buscema eternizou a criação de Stan Lee, personificando a expressão de angústia e sofrimento do mais angustiado e mais idealista de todos os heróis já criados – citado por seu criador como seu personagem preferido. Ele, o Surfista “Norin Radd”, retrata como nenhum outro a insuficiência de nossa alma errante, que vaga por nossas vidas como aquele herói numa prancha, em busca de uma felicidade que existe, mas nos parece tão próxima quanto impossível ou inalcançável.
Meu caminho é cada manhã
Meu destino não é de ninguém
Eu não deixo os meus passos no chão
Se você não entende, não vê
Se não me vê, não entende
Não procure saber onde estou
Se o meu jeito te surpreende
Se o meu corpo virasse sol
Minha mente virasse sol
Mas, só chove e chove
Chove e chove
Se um dia eu pudesse ver
Meu passado inteiro
E fizesse parar de chover
Nos primeiros erros
O meu corpo viraria sol
Minha mente viraria
Mas, só chove e chove
Chove e chove
(Primeiros Erros - Letra de Kiko Zambianchi)