A simbologia do Idiota



Nestes dias, refletindo sobre uma pessoa que teria aparecido em público para fazer uma afirmação infeliz e despropositada sobre determinado assunto, troquei as vestes da indignação súbita pelo traje sofisticado de uma profunda reflexão. Com isso, cheguei a uma conclusão: graças a Deus pelos idiotas!

Sim, viva os idiotas!

E se não fossem os idiotas para falarem aquilo que a gente precisa ouvir, aquilo que ninguém é idiota o suficiente para dizer - mas o idiota é - e acaba ajudando a gente a elaborar os planos, ou confirma nossas suspeitas? O que seria de nós sem eles?

O idiota tem sua figura retórica mais famosa no bobo-da-corte: infiltrado na realeza, expõe todas as mazelas e bizarrices dos nobres. E todos riem, e todos se divertem, porque ele - o bobo - realiza a catarse de expor o pensamento de todo mundo, sem que nnguém se exponha. Veja o favor que ele faz! Sagrado sacerdócio de ser idiota! Só ele se expõe: por isso todos precisam do bobo da corte!


Ninguém quer ser como ele, todos se relacionam superficialmente com ele. Há quase que uma benevolência, um sentimento de compaixão ou dó na relação com o bobo da corte... "coitado, ele não sobreviveria sem a sua idiotice", 'pobrezinho, ele é digno de pena". Acolher um idiota nos faz acreditar em filantropia: praticamos uma caridade, nos purificamos quando, deliberadamente, perdoamos ou aceitamos os idiotas entre nós. É como se estivéssemos reconhecendo que os seres inferiores precisam de amparo, e que toda a sua idiotice nos faz seres beneficentes, porque a toleramos.

A presença do idiota também nos serve para um crescimento. Vendo os erros que o idiota comete, percebemos os erros que nunca devemos cometer. Ele é espelho transgresso, é distorção da nossa própria imagem, reverso de nossa imagem pretendida: ele, o idiota, representa aquilo que não queremos representar. Em sua catarse, ele é antes de tudo uma cobaia social, porque se permite ser nosso objeto de experimentação: tudo aquilo que no idiota parece ridículo, é aquilo que devo evitar. Precisamos conviver com idiotas para aprendermos a não ser como eles! Há uma certa sensação de superioridade em nós quando o idiota se manifesta: ao julgá-lo tão baixo e inferior em suas atitudes, concluímos que estamos acima, elevados, superiores. Só nos reconheceríamos tão crescidos se tivéssemos efetivamente alguém tão parvo, tão mesquinho, tão apequenado diante de nós. É diante da mesquinhez do idiota que percebemos, também, o quanto melhoramos. Para isso, não precisamos humilhar nem depreciar o idiota. Caso o façamos, estaremos refletindo a própria imagem dele, que é, por natureza, expositor e delator dos outros.

Aquilo que o "idiota" (num sentido lúdico da palavra, sem ofender ou depreciar) expurga através de sua parva mentalidade é um mal secreto que passa a ser revelado, é uma ferida doentia que sangra exposta, é uma mentira que jamais será verdade, mas que nos fortalece na construção da nossa verdade, porque - travestindo-se de sinceridade - a idiotice (o modus operandi do idiota) desenterra tesouros, revela coisas ocultas, exorciza demônios.

Quando o idiota se pronuncia, a audiência gosta de ver seu pronunciamento. Ele não tem propriedade no discurso, não tem alinhamento. Sua retórica é torpe. Dizem alguns dicionários que um idiota tem
um quinto, ou menos, do nível normal do grupo de idade cronológica a que pertence. O idiota não tem prestígio, não tem respaldo. Ninguém o leva a sério, é claro. O idiota irrita e atrai ao mesmo tempo. Ele sugere o desprezo, a não-afeição, mas também sugere a curiosidade, porque sempre extravasa um pouco das coletividades inconscientes. Esse lado catártico do idiota, da "sinceridade-demais-que-é-falta-de-educação", permite que ele conviva socialmente, porque alguns ainda pensarão que ele é sincero, transparente, leal. Ele pode ser tudo isso, mas sua deficiência de raciocínio o impede de o provar: quanto mais o idiota tenta parecer igual ou inteligente, mais ele configura a sua estupidez! Por mais que se esforce para superar a idiotia, o idiota mergulha em profundo abismo e se banha cada vez mais profundamente nas águas de sua fraqueza simbólica. É como o afogado que, quanto mais se debate, mais perde ar e mais se afoga.

Algumas coisas em nossa vida só se tornaram claras e perceptíveis por causa dos idiotas que nos cercaram, e nos deram a possibilidade de enxergar o certo a partir de sua incrível vocação para fazerem o que é errado.

Viva os idiotas, eles têm parte fundamental neste plano de existência!

quarta-feira, 15 de outubro de 2008 às 11:57

3 Comments to "A simbologia do Idiota"

Nossa amigo, esse texto é de um requinte ímpar. Você é um talento, e por ser esse talento deveria escrever para as massas.
Parabéns pela forma sutil e firme que escrevestes esse texto. Te admiro mais ainda.

Abraços do seu aprendiz.

Anderson

A palavra idiota vai de encontro a palavra diferente. O "ser" idiota é uma possibilidade da liberade, além de qualquer outra coisa. Na corte essa possibilidade era restrita, e se fazia necessário uma vestimenta teatral para que os iguais pudessem aceitar a mínima oposição a sua forma de ser, na atualidade o bobo da corte foi substituido pelo crítico. A idéia de superioridade é que me desagrada em seu texto, quando seu texto remete a idéia de existência fadada a idiotice como uma posição social e não como um comportamento tomado muitas vezes por necessidade de sair da igualdade sufocante...

Oscar, agradeço seu comentário e participação, mas creio que há uma linha tênue separando nossa interpretação sobre o fato. Uma coisa é considerar a possibilidade de o idiota ser um libertário de si mesmo pelo fato de ele não ter vínculo nenhum com a "racionalidade social" que acoberta os demais, outra coisa é considerar esse desvínculo uma proposta intelectual. Não acredito que seja! Minha referência baseia-se em um exemplo específico, obviamente oculto no texto, mas citado no primeiro parágrafo. Não se trata de alguém que diga algo para ser livre: trata-se de uma pessoa incoerente, irreflexiva, incapaz de expandir sua visão ao mundo alheio sem antes considerar tão somente o seu. É o caso que cito como inspirador desse texto.
Nâo o idiota "modulado" da corte, mas o idiota que atenta contra si mesmo, tornando-se acusador e réu de seu próprio argumento.
Se considerarmos todos os idiotas como libertários, acredito eu que tenhamos uma disgressão do conceito. Se há relativização desse conceito, então é necessário preservar todas as possibilidades. Dentre elas a do "idiota-idiota", ou seja, aquele que, em vez de libertário, torna-se escravo de sua própria incoerência latente. Uma espécie de "Ofélia" do humor televisivo: condena-se tão somente por abrir a boca para falar!
Esse é meu contraponto e um esclarecimento sobre o que procurei abordar no texto.
Grande abraço.