Ao ingressarmos em um grupo, pertencermos a um sistema, nos tornamos parte de um grande quebra-cabeças. Juntos, tomaremos forma e daremos forma, faremos sentido e produziremos sentido.
No quebra-cabeças do convívio social, encaixamos as partes com encaixes que devem ser sempre perfeitos. O menor sinal de desajuste, de incompatibilidade ou de encaixe imperfeito pode significar que aquela peça não deveria estar ali, que está encaixada indevidamente naquele lugar.
O momento de encontro da peça com as demais peças é quase divino. Sobretudo quando se encaixa a última peça, aquela que dá forma e sentido à imagem. tem-se a npítida impressão de que a última peça do quebra-cabeças é a mais esperada, é a "pedra fundamental", é a ponte para a travessia do mundo sem sentido para um mundo de representação simbólica mais clara, visível, facilmente percebida pelos sentidos humanos.
O que acontece, porém, quando uma peça dessas se desprende do todo? De imediato, a visão geral da imagem se deforma. O olhar é imediatamente atraído, num quebra-cabeças incompleto, para os buracos, para os clarões. É a nossa tendência humana a buscar o desvio, a quebra da regra, a dissonância. Se virmos um quebra-cabeças incompleto, nosso primeiro olhar mais atento será para a parte que falta da imagem, não para a aimagem (incompleta) em si. Inconscientemente, só visualizamos as partes que faltam a partir daquilo que visualizamos como a imagem completa, sugerida pelas peças que ali estão. Mas nossos olhos se voltam sempre para o que não é, em detrimento daquilo que é.
Quando a peça se desprende, restam-nos poucas alternativas. Em primeiro lugar, o objetivo macro está descumprido, pois a ausência da peça compromete o sentido da imagem. A reposição é, portanto, mais que necessária: vital. Uma possibilidade seria rearranjar todas as demais peças em posições diferentes, até que elas pudessem se encaixar de tal forma que não houvesse entre elas imperfeições e que, finalmente, sua junção pudesse novamente recriar uma figura. É bom que se diga: ainda que essa tarefa hercúlea se dê por realizada, seria tecnicamente impossível redesenhar a figura anterior. O que deixa claro que a perda de uma peça não encerra, em si só, a necessidade de um novo destino para uma nova significação dessa peça: ela implica em um reposicionamento e uma reflexão sobre o sentido real de todas as demais peças.
Resgatar essa peça perdida torna-se quase uma obsessão, em um primeiro momento. Todo caminho diferente desse resgate implicará em esforço, desgaste, sensação de dúvida, inconsistência. A contrapartida é que esse alto preço trará uma imagem nova, ou seja, promoverá uma reciclagem. Mas o desafio é impositivo, não é optativo. É "um acidente": a peça se perde, se desloca subitamente. Não há aviso prévio nem margem para provisão dessa perda, o que inutiliza qualquer esforço para evitar que ela saia do quebra-cabeças. Não há outra alternativa a não ser repensar toda a imagem - o que muitas vezes expõe uma falha de planejamento do jogador em não calcular a perda da peça como problema possível, e não ter um "plano B" para melhor equacionar a questão.
Quando uma peça sai do amálgama, todas as outras perdem o sentido anterior e precisam se reposicionar. Cada uma delas individualmente precisa redefinir sua significação para que, todas juntas, possam contruir uma nova imagem. Mesmo quando se reposicionam, esse esforço da reorganização as fará, inevitavelmente, reaver toda a trajetória, todas as possibilidades de novas imagens, tudo aquilo que elas até então acreditavam fazer sentido.
É mais fácil, portanto, repor a peça perdida do que tentar qualquer outra solução.
0 Comments to "O enigma do quebra-cabeças e da peça perdida"