A Síndrome de Peter Petrelli

Peter Petrelli: figura retórica que oscila entre o herói e o sujeito angustiado.

Peter Petrelli é um conhecido personagem, protagonista da série de televisão americana Heroes. Inspirada na concepção dramática dos mutantes X-Men, a série mostra jovens com poderes sobrenaturais e suas dificuldades para conviver com as habilidades e manter seu caráter incorruptível diante deles. Os mais afoitos querem dominar o mundo, os menos ambiciosos querem salvá-lo. E Peter Petrelli é o mais poderoso de todos eles: basta estar diante dos tais que absorve imediatamente seus poderes. Assim sai acumulando os poderes, embora sua índole não se corrompa e seu caráter de herói se mantenha preservado. Pelo menos até que isso mude em alguma temporada.

O convívio com as pessoas nos faz, muitas vezes, parecer um Peter Petrelli. Em meio ao confronto, ao conflito, absorvemos o que está ao nosso redor e nos modificamos em função disso. Se nos parece difícil tentar manter o controle dos mecanismos sociais que nos circundam, mais ainda é entender quando, de alguma forma, esses mecanismos nos parecem totalmente sob controle. Em nosso convívio, articulamos e procuramos regrar as coisas à nossa volta. Mesmo a quebra das regras não significa, em momento algum, o "desregramento; pelo contrário: pressupõe-se, nesse movimento, a criação de novas regras. Mudar um plano simbólico, reconstruir uma significação, sugere uma reposição semântica, uma re-significação dos códigos, um "re-simbolismo". São novas regras que substituem as anteriores, porque a ausência da regra seria a ausência de significado, e o pensamento humano não resiste nem pode conviver com a inexistência simbólica.

O desfecho da primeira temporada faz a analogia do Messias, do "salvador" que sofre, se doa, morre e (já na segunda temporada) resusscita para dar seqüência a seu "plano de salvação". Petrelli vai acumulando poder, e assume a responsabilidade de, com isso, doar-se por uma causa maior, filantrópica.

Nossos talentos, nossas habilidades, aquilo que somos ou representamos para os outros, acabam fazendo de nós sujeitos "responsáveis" por alguma coisa. Assumimos compromissos, nos vemos muitas vezes presos à imagem de herói, imagem mítica que as sociedades precisam, requerem e projetam. Os mitos fazem sentido, contróem sentido, dão sentido às sociedades. Em esferas menores, homens se tornam mitos em seus grupos de convívio, e ocupam papéis de destaque que os fazem, de alguma forma, dependentes de uma imagem. Cobranças inevitáveis e pressões decorrentes dessa responsabilidade aparecem. O que os grupos não contam, porém, é com a desistência. A desistência frustra os planos e as expectativas dos outros - expectativas que eles, muitas vezes, frustraram em si mesmos e outorgaram ao outro, mesmo sem perceberem que isso abate e sobrecarrega.

A grande questão é que, ao manifestar as habilidades que lhe são inerentes, Petrelli passa a ser visto pelos outros com uma superioridade que não lhe parece (ainda) perceptível. Se para o olhar de fora essas habilidades são tão destacadas, para ele a naturalidade com que elas se manifestam não o deixa pensar além do fato de serem essas habilidades uma simples extensão do que ele é. Nisso o processo mítico se dá: o sujeito em si não se dá conta de que aquilo que ele faz ou representa é maior do que ele mesmo. Ele se olha no espelho e se vê como igual (a ele mesmo), enquanto os outros o vêem como diferente (deles, dos outros). Mas, ao ser visto pelos outros como "diferente" ou "especial", vem o peso das cobranças, e essa identidade esperada (pelos outros) pode entrar em conflito com a afirmação da identidade real, quebrando a linha de comunicação e promovendo ate mesmo ruído, afastamento e conseqüente transgressão.

A expectativa das pessoas é de que Petrelli ocupe, a todo instante e a qualquer preço, o seu papel de modelo do grupo. Há uma sensação de que suas virtudes serão de pouco proveito se não estiverem a serviço daquele grupo que o proclama e o incensa: fora do grupo, ele não será por eles reconhecido nem ovacionado.





segunda-feira, 20 de outubro de 2008 às 15:05 , 0 Comments

O enigma do quebra-cabeças e da peça perdida


Ao ingressarmos em um grupo, pertencermos a um sistema, nos tornamos parte de um grande quebra-cabeças. Juntos, tomaremos forma e daremos forma, faremos sentido e produziremos sentido.

No quebra-cabeças do convívio social, encaixamos as partes com encaixes que devem ser sempre perfeitos. O menor sinal de desajuste, de incompatibilidade ou de encaixe imperfeito pode significar que aquela peça não deveria estar ali, que está encaixada indevidamente naquele lugar.

O momento de encontro da peça com as demais peças é quase divino. Sobretudo quando se encaixa a última peça, aquela que dá forma e sentido à imagem. tem-se a npítida impressão de que a última peça do quebra-cabeças é a mais esperada, é a "pedra fundamental", é a ponte para a travessia do mundo sem sentido para um mundo de representação simbólica mais clara, visível, facilmente percebida pelos sentidos humanos.

O que acontece, porém, quando uma peça dessas se desprende do todo? De imediato, a visão geral da imagem se deforma. O olhar é imediatamente atraído, num quebra-cabeças incompleto, para os buracos, para os clarões. É a nossa tendência humana a buscar o desvio, a quebra da regra, a dissonância. Se virmos um quebra-cabeças incompleto, nosso primeiro olhar mais atento será para a parte que falta da imagem, não para a aimagem (incompleta) em si. Inconscientemente, só visualizamos as partes que faltam a partir daquilo que visualizamos como a imagem completa, sugerida pelas peças que ali estão. Mas nossos olhos se voltam sempre para o que não é, em detrimento daquilo que é.

Quando a peça se desprende, restam-nos poucas alternativas. Em primeiro lugar, o objetivo macro está descumprido, pois a ausência da peça compromete o sentido da imagem. A reposição é, portanto, mais que necessária: vital. Uma possibilidade seria rearranjar todas as demais peças em posições diferentes, até que elas pudessem se encaixar de tal forma que não houvesse entre elas imperfeições e que, finalmente, sua junção pudesse novamente recriar uma figura. É bom que se diga: ainda que essa tarefa hercúlea se dê por realizada, seria tecnicamente impossível redesenhar a figura anterior. O que deixa claro que a perda de uma peça não encerra, em si só, a necessidade de um novo destino para uma nova significação dessa peça: ela implica em um reposicionamento e uma reflexão sobre o sentido real de todas as demais peças.

Resgatar essa peça perdida torna-se quase uma obsessão, em um primeiro momento. Todo caminho diferente desse resgate implicará em esforço, desgaste, sensação de dúvida, inconsistência. A contrapartida é que esse alto preço trará uma imagem nova, ou seja, promoverá uma reciclagem. Mas o desafio é impositivo, não é optativo. É "um acidente": a peça se perde, se desloca subitamente. Não há aviso prévio nem margem para provisão dessa perda, o que inutiliza qualquer esforço para evitar que ela saia do quebra-cabeças. Não há outra alternativa a não ser repensar toda a imagem - o que muitas vezes expõe uma falha de planejamento do jogador em não calcular a perda da peça como problema possível, e não ter um "plano B" para melhor equacionar a questão.

Quando uma peça sai do amálgama, todas as outras perdem o sentido anterior e precisam se reposicionar. Cada uma delas individualmente precisa redefinir sua significação para que, todas juntas, possam contruir uma nova imagem. Mesmo quando se reposicionam, esse esforço da reorganização as fará, inevitavelmente, reaver toda a trajetória, todas as possibilidades de novas imagens, tudo aquilo que elas até então acreditavam fazer sentido.

É mais fácil, portanto, repor a peça perdida do que tentar qualquer outra solução.


quarta-feira, 15 de outubro de 2008 às 12:43 , 0 Comments

A simbologia do Idiota



Nestes dias, refletindo sobre uma pessoa que teria aparecido em público para fazer uma afirmação infeliz e despropositada sobre determinado assunto, troquei as vestes da indignação súbita pelo traje sofisticado de uma profunda reflexão. Com isso, cheguei a uma conclusão: graças a Deus pelos idiotas!

Sim, viva os idiotas!

E se não fossem os idiotas para falarem aquilo que a gente precisa ouvir, aquilo que ninguém é idiota o suficiente para dizer - mas o idiota é - e acaba ajudando a gente a elaborar os planos, ou confirma nossas suspeitas? O que seria de nós sem eles?

O idiota tem sua figura retórica mais famosa no bobo-da-corte: infiltrado na realeza, expõe todas as mazelas e bizarrices dos nobres. E todos riem, e todos se divertem, porque ele - o bobo - realiza a catarse de expor o pensamento de todo mundo, sem que nnguém se exponha. Veja o favor que ele faz! Sagrado sacerdócio de ser idiota! Só ele se expõe: por isso todos precisam do bobo da corte!


Ninguém quer ser como ele, todos se relacionam superficialmente com ele. Há quase que uma benevolência, um sentimento de compaixão ou dó na relação com o bobo da corte... "coitado, ele não sobreviveria sem a sua idiotice", 'pobrezinho, ele é digno de pena". Acolher um idiota nos faz acreditar em filantropia: praticamos uma caridade, nos purificamos quando, deliberadamente, perdoamos ou aceitamos os idiotas entre nós. É como se estivéssemos reconhecendo que os seres inferiores precisam de amparo, e que toda a sua idiotice nos faz seres beneficentes, porque a toleramos.

A presença do idiota também nos serve para um crescimento. Vendo os erros que o idiota comete, percebemos os erros que nunca devemos cometer. Ele é espelho transgresso, é distorção da nossa própria imagem, reverso de nossa imagem pretendida: ele, o idiota, representa aquilo que não queremos representar. Em sua catarse, ele é antes de tudo uma cobaia social, porque se permite ser nosso objeto de experimentação: tudo aquilo que no idiota parece ridículo, é aquilo que devo evitar. Precisamos conviver com idiotas para aprendermos a não ser como eles! Há uma certa sensação de superioridade em nós quando o idiota se manifesta: ao julgá-lo tão baixo e inferior em suas atitudes, concluímos que estamos acima, elevados, superiores. Só nos reconheceríamos tão crescidos se tivéssemos efetivamente alguém tão parvo, tão mesquinho, tão apequenado diante de nós. É diante da mesquinhez do idiota que percebemos, também, o quanto melhoramos. Para isso, não precisamos humilhar nem depreciar o idiota. Caso o façamos, estaremos refletindo a própria imagem dele, que é, por natureza, expositor e delator dos outros.

Aquilo que o "idiota" (num sentido lúdico da palavra, sem ofender ou depreciar) expurga através de sua parva mentalidade é um mal secreto que passa a ser revelado, é uma ferida doentia que sangra exposta, é uma mentira que jamais será verdade, mas que nos fortalece na construção da nossa verdade, porque - travestindo-se de sinceridade - a idiotice (o modus operandi do idiota) desenterra tesouros, revela coisas ocultas, exorciza demônios.

Quando o idiota se pronuncia, a audiência gosta de ver seu pronunciamento. Ele não tem propriedade no discurso, não tem alinhamento. Sua retórica é torpe. Dizem alguns dicionários que um idiota tem
um quinto, ou menos, do nível normal do grupo de idade cronológica a que pertence. O idiota não tem prestígio, não tem respaldo. Ninguém o leva a sério, é claro. O idiota irrita e atrai ao mesmo tempo. Ele sugere o desprezo, a não-afeição, mas também sugere a curiosidade, porque sempre extravasa um pouco das coletividades inconscientes. Esse lado catártico do idiota, da "sinceridade-demais-que-é-falta-de-educação", permite que ele conviva socialmente, porque alguns ainda pensarão que ele é sincero, transparente, leal. Ele pode ser tudo isso, mas sua deficiência de raciocínio o impede de o provar: quanto mais o idiota tenta parecer igual ou inteligente, mais ele configura a sua estupidez! Por mais que se esforce para superar a idiotia, o idiota mergulha em profundo abismo e se banha cada vez mais profundamente nas águas de sua fraqueza simbólica. É como o afogado que, quanto mais se debate, mais perde ar e mais se afoga.

Algumas coisas em nossa vida só se tornaram claras e perceptíveis por causa dos idiotas que nos cercaram, e nos deram a possibilidade de enxergar o certo a partir de sua incrível vocação para fazerem o que é errado.

Viva os idiotas, eles têm parte fundamental neste plano de existência!

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